A importancia Afro na construção de nossa cidade
Nas fotografias visualizamos duas mulheres, negras, que prestavam serviços diversos nas casas das famílias Lied e Castilhos. As duas fotografias tem data muito próxima entre elas (1916 e 1919) e também da abolição da escravidão (1888). No verso das fotografias estão registradas algumas informações que nos fazem pensar um pouco sobre a provável condição das duas mulheres. Na foto de Maria está escrito que ela era “mucama”, “filha de escravo” e “ajudava quando estava pra nascer as filhas da família”. Na foto de Jacinta está escrito “filha de escravos”, “parteira” e que foi “tendo criada por eles como filha adotiva”. As imagens e as suas descrições no verso revelam vestígios do escravismo e das relações de trabalho que se estabeleceram após a abolição. As fotografias são fontes importantes para conhecer a história do negro, uma vez que após a República (1889) a cor do sujeito desaparece dos registros (MOREIRA & MUGGE, 2019, p.35), tornando muito difícil de identificar sua presença nas fontes documentais tradicionais. Moreira & Mugge (2019) também revelam as relações de imigrantes alemães e descendentes com a posse de escravos na região do Vale dos Sinos, o que identifica que as regiões de imigração não ficaram isentas ao escravismo e muito menos ao contato com a população de descendência africana. Na mesma época, provavelmente 1918, outra história encontrada no livro de Mário Pizzeta (1973, p.27-29) nos chamou a atenção. Ele descreve um homem de nome José Tristão que realizava práticas curativas, fazia remédio de erva, pílulas de raízes e folhas (Pílulas Tristão) e receitava lavagens por via anal a qual injetava com taquaras. Segundo Pizzeta (p.29, 1973), o homem sofreu represálias do padre Camino, tanto pelas práticas curativas quanto por “colocar cartazes nas portas das casas, opinando sobre o clero e a Igreja”. O desfecho, sem muitas explicações, é que o homem sofreu um processo e teve que “abandonar o lugar”. Esse relato demonstra um pouco do universo das práticas curativas do mundo caboclo e também revela as implicações da frente pioneira que resultou num universo de diversidades de crenças e ao mesmo tempo de combate a essas práticas. Os conflitos na região sul envolvendo o curandeirismo e a colonização foram comuns, como no caso dos Muckers [GEVEHR; MEYRER; NEUMANN, 2020], Monges do Pinheirinho [FILATOW, 2020] e dos Monges Barbudos [KUJAWA, 2020]. Os construtores da ferrovia Em 1º de junho de 2019 fez 100 anos da chegada do trem na localidade de Várzea Grande (atualmente um bairro de Gramado), uma construção difícil decorrente do desnível entre a planície e o planalto. A Estação Sander (atual município de Três Coroas) ficava numa altitude média de 56 metros, a Estação Várzea Grande numa altitude média de 610 metros e a Estação Gramado com altitude média de 820 metros. A subida de Sander a Várzea Grande, e depois até Gramado, enfrentou muitas dificuldades financeiras, de engenharia e principalmente de mão-de-obra. O memorialista Erni Engelmann (2007, p.105) descreveu que “o único grupo de trabalhadores de que João Corrêa podia dispor era o de homens de todas as categorias morais, alguns bons elementos, porém, dentre a maioria, havia ladrões e criminosos dos piores quilates”. No mesmo relato, Engelmann (2007) descreve que o Coronel João Corrêa3“matinha seus empregados sob regime severo” e ele mesmo sugeria aos colonos que se armassem e, se preciso, ameaçassem os trabalhadores. Ele ainda relata que havia furtos de animais dos colonos e brigas entre os trabalhadores que terminavam em mortes. A construção de um trecho ferroviária difícil de ser executado pelo desnível do relevo e os problemas financeiros podem ter levado Coronel João Corrêa buscar mão-de-obra que fosse menos onerosa possível. O que identificamos até o momento são os relatos acima citados e fotografias que revelam um pouco tanto do trabalhador quanto das condições de trabalho. 3 O Coronel João Corrêa Ferreira da Silva liderou a construção da ferrovia de Novo Hamburgo a Taquara (1903) e depois de Taquara a Canela (1924). João Corrêa foi também intendente de São Leopoldo em 1924.
Na frente de expansão, na segunda metade do século XIX, o tropeirismo luso-brasileiro (os tropeiros de Gramado se fixaram na terra) tomou posse das terras e assim permaneceu até meados dos anos 1870-80, quando se consolidou a formalização da propriedade. Em seguida, ocorre a frente pioneira com a colonização das terras (fracionamento em propriedades menores) com excedentes dos descendentes de alemães e italianos provenientes das colônias lindeiras (Caxias, Nova Petrópolis, São Sebastião do Caí e Taquara). Nessas duas frentes de ocupação estavam os negros, que num primeiro momento servem à frente de expansão como cativos ou agregados; e num segundo momento servem à frente pioneira como trabalhadores domésticos (lavadeiras, cozinheiras, parteiras, babás, etc) ou braçais (jardineiros, carpinteiros, construtores etc).
O levantamento preliminar da história do negro em Gramado nos revelou que é possível identificar os lugares de memória dessa população; entretanto, por outro lado é complexo ter o reconhecimento desse grupo na participação da formação histórica do município, uma vez que os órgãos públicos não os reconhecem, situação que pode dificultar, inclusive, até as políticas públicas sobre o tema nas escolas. As fontes disponíveis nos revelaram o quão desafiador é dar sentido às memórias que se apresentam como uma “colcha de retalhos”, já que oficialmente nada existe sobre essas populações na história local. Uma pesquisa mais profunda em arquivos regionais e estaduais pode revelar informações que a nível municipal tem se mostrado extremamente difícil. É fato que a história do negro em Gramado está na invisibilidade, mas também é fato que esse é um tema historiográfico que nas últimas décadas vem sendo discutido nas escolas por força da lei 10.639/2003, e também se promoveu no município duas edições do Curso de Aperfeiçoamento UNIAFRO – Política de Promoção da Igualdade Racial na Escola. O curso de Licenciatura em História das Faculdades Integradas de Taquara vem desempenhando na última década um importante papel através de pesquisas acadêmicas, mas ainda há muito o que fazer, principalmente no que se refere à história do negro, tanto no espaço gramadense quanto em todo o território que fazia parte do município de Taquara (Taquara, Parobé, Igrejinha, Três Coroas, Gramado e Canela). Referências BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. BRASIL. Lei nº 10.639, de 09 janeiro de 2003.Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no